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Uma decisão incerta*

  • relyjae
  • 29 de nov. de 2020
  • 4 min de leitura

Atualizado: 30 de abr. de 2022

*Este é um conto de ficção inspirado em minha bisavó paterna, italiana que imigrou para o Brasil nos idos de 1870.

 

Delfina morava num pequeno vilarejo incrustado nas colinas ao redor do belíssimo Lago de Como. Uma menina forte, com boa saúde para sobreviver ao inverno rigoroso daquela região, onde a neve dificultava ainda mais a vida de todos. Aos 12 anos já dava os ares de moça, com seus longos cabelos negros presos por um coque, realçando seus olhos de um azul vibrante e sua pele clara. Era uma beleza rústica e velada pelas vestes simples de trabalhadora rural.

Eram tempos difíceis para as famílias pobres que viviam na Itália nos anos pós-unificação. Depois de um longo período de lutas, o país passava por grande transformação com a instituição do Reino da Itália, sob o comando do rei Vitor Emanuel II, da Casa dos Savoia. Um reino unificado constitucionalmente, mas ainda dividido politicamente pelos partidários descontentes, que preferiam a república e a democracia à monarquia. Com todas essas mudanças e com a economia se reinventando, quem mais sofria era o povo. Muitos sobreviviam de sua própria produção agrícola e da criação de animais em pequenas propriedades onde todos os membros da família trabalhavam duro. E era assim que vivia a família de Delfina.


Uma grande quantidade de moradores daquela região estava emigrando em busca de novas oportunidades, para outras regiões do país ou até mesmo para o exterior. Era o caso de Gabriel, tio e padrinho de Delfina, operário de obras que tinha conseguido uma proposta num programa de trabalho no extremo sul do Brasil. Ele era irmão da mãe dela e iria partir junto com sua mulher grávida de três meses.


Naquele domingo de outono, com o sol iluminando os bosques dourados pelas folhas já prontas a cair, iriam se reunir no tradicional almoço de família após a missa na paróquia local.

Do alto do vilarejo se avistava a bela paisagem, com o lago de Como, majestoso, espelhando a natureza do seu entorno. Delfina e sua irmã Giovana, dois anos mais nova, adoravam aqueles domingos, pois podiam ver os rapazes que esperavam as moças passarem nas alamedas da praça central a caminho da missa.


Durante o almoço Gabriel falou da sua intenção de emigrar para um país distante, com promessa de trabalho e uma vida nova.


— Compadre Rafael, a situação do nosso país está duríssima e sem perspectiva de melhora. Não vou esperar e viver na miséria. Vou levar meu filho pra nascer no novo mundo e tentar a vida por lá.


— Mas a longa travessia do oceano num vapor, pode ser arriscada para uma mulher neste estado, estás brincando com a sorte Gabriel. Por que não tentas ir para Milano trabalhar na construção?


— Já tentei, existem filas enormes e não estão mais contratando ninguém. As obras estão paradas. Quem sabe tu vais também antes que o inverno nos tranque aqui em cima. As coisas pra vocês também não estão boas. Poderíamos ir todos juntos.


— E o que vou fazer com meu pedaço de terra herdado de meu pai? Não posso abandonar tudo por uma aventura incerta além mar. Meu chão é aqui.

Enquanto eles conversavam acaloradamente, as mulheres preparavam gnocchi al pomodoro .

Giovana e Delfina ajudavam a arrumar a grande mesa, relembrando os olhares dos rapazes, comentando os vestidos das outras moças e os penteados das mais abastadas. Sonhavam um dia poder se vestir daquele jeito, trocar o algodão pelos tecidos finos.

Durante o almoço, na hora do brinde com o vinho tinto produzido ali mesmo pela família, Gabriel abraçou Caterina, sua mulher, anunciando a novidade: já estavam com as passagens para embarcar no mês seguinte no vapor da Gio.Batta Lavarello e Compagnia. Partiriam de Gênova rumo a Montevideo e Buenos Aires.

Foi aquele alvoroço e exclamações de surpresa. Alguns aprovando e desejando sorte; outros chamando-o de maluco.

Delfina ficou maravilhada escutando o padrinho falar daquelas terras longínquas e de como seria a vida por lá. Imaginava tudo conforme ele descrevia e seu semblante se iluminava.


Gabriel, como que lendo os pensamentos dela disse aos compadres:


— Caterina vai precisar de companhia enquanto eu estiver fora trabalhando, ainda mais depois que a criança nascer. Quem sabe vocês deixam nossa afilhada, Delfina, ir junto conosco? Depois vocês poderiam nos encontrar. Do contrário, prometo que a mando de volta.


— Tu estás é pazzo! Agora ainda quer levar minha filha. De jeito nenhum! — disse Rafael.


Delfina voltou-se para sua mãe com aquele brilho no olhar e Sabina viu o desejo nos olhos da filha. Giovana se abraçou na irmã, como a pedir para ela ficar ao seu lado.


— Rafael, não sejamos egoístas. Olha a nossa situação, não temos muito a oferecer para ela aqui. Não temos dinheiro nem para seus estudos. Está trabalhando feito um homem, carregando lenha e cuidando dos animais — respondeu Sabina.


Rafael olhou para ela assustado, não esperava esta reação da mulher, na maioria das vezes resignada. Voltou-se para a filha que imediatamente baixou os olhos. Ele se deu conta de que ela estava crescendo, judiada pela lida. Sentiu o peso de sua impotência por não poder dar uma melhor condição para a família. Ficou mexido com a possibilidade de mudar isso.


— Por hoje não se fala mais nisso, vamos confraternizar e aproveitar nosso encontro. Depois conversamos em particular e decidimos. E virando-se para seu irmão na outra ponta da mesa exclamou:


— Toca a gaita Giuseppe, vamos começar as danças. Chega de surpresas por hoje!

 

Fotos de Delfina adulta, na cidade de Santana do Livramento, onde criou suas raízes:



3 Comments


relyjae
Nov 30, 2020

A ideia é dar continuidade sim.

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zenidanelon
Nov 30, 2020

Espero que este tenha sido o primeiro capítulo dessa linda história. Fiquei querendo mais. Muito mais!

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Jorge Jaeger
Jorge Jaeger
Nov 29, 2020

Oi Parabéns pelo relato,bem emocionante!

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