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Centenário do Professor Rubem Rodrigues, um visionário.

  • relyjae
  • 25 de abr. de 2024
  • 7 min de leitura
 


Há exatos cem anos, às três da madrugada do dia 25 de abril de 1924, nascia meu pai, Rubem Rodrigues. Sua terra natal, a pequena Santana do Livramento, está localizada na chamada “Fronteira da Paz”, entre o Brasil e o Uruguai, na divisa com a sua vizinha uruguaia, Rivera. Por ser uma fronteira terrestre, sem acidentes geográficos, podemos colocar um pé no Brasil e o outro no Uruguai.

Até os idiomas lá se mesclaram, dando origem ao “portunhol”, português com espanhol. Os casamentos entre fronteiriços também se tornaram comuns e destes nasciam os “dobles chapas”, como eram chamados seus filhos por causa da dupla nacionalidade. O termo foi incorporado das “dobles chapas” dos carros que antigamente usavam duas placas para poder transitar entre as cidades. Talvez por isso meu pai tenha sido sempre um homem agregador, que gostava de compartilhar seu conhecimento, indo além das fronteiras em busca de seus sonhos. Nasceu destinado a ultrapassar limites e deixar sua marca neste mundo, através de sua dedicação à medicina. 



Foi neste contexto fronteiriço que a sua família se formou, unindo nativos da região, como os Charruas, com os imigrantes europeus que lá chegaram em meados do século dezenove. Entre eles, os italianos, suíços, espanhóis e portugueses.


Sua mãe, Branca Pertusi Boscacci, era filha de uma imigrante italiana com um imigrante suíço/italiano do Cantão Ticino. Ela se casou com Pedro Rodrigues Primo, nascido na região, mas filho de um descendente português e de uma uruguaia (Braz), com origem espanhola. Portanto, nas veias de Rubem corria o sangue desta mistura de raças, herdando o espírito desbravador e a tenacidade dos imigrantes e a bravura da nação Charrua.

Branca e Pedro casaram-se bem jovens, ele já um próspero comerciante, com sua própria loja de ferragens; ela uma moça prendada e do lar, como era o costume da época. Tiveram quatro filhos: Gecy, Eloha, Rubem e Elohy, todos criados em Santana do Livramento numa vida familiar simples e estável, educados com os valores cristãos e no bom convívio com os parentes de ambos os lados. Fizeram questão que todos os filhos estudassem. As meninas se formaram professoras. Rubem estudou na escola primária e cursou o Ginásio Santanense, dos padres maristas, onde se destacou com boas notas, sempre estudioso e dedicado. Ele gostava de afirmar que a melhor herança que se podia receber era o caráter e a boa educação, pois isso ninguém poderia nos tirar. Sempre prezou por ambos e nos passou este legado do qual nos orgulhamos muito.


Foto de família: da esquerda para a direita, Gecy, Branca, Elohy, Rubem, Pedro e Eloha


Ao se formar no ginásio em 1942, seu pai queria que ele trabalhasse na loja com ele e fizesse o concurso para o Banco do Brasil. Mas, Rubem já tinha seu sonho: o de se formar médico. E para tanto ele traçou seus planos e não esmoreceu, nem com a negativa de seu pai. Precisou cortar os laços familiares para se lançar rumo a capital, Porto Alegre. Pediu ajuda financeira para um tio, como um empréstimo que prometeu pagar quando pudesse. Foi assim que comprou sua passagem de trem para partir. Despedidas nunca são fáceis, mas como um bom pragmático, sabia que precisava superar este primeiro obstáculo para seguir em frente.






Durante a viagem de trem, conheceu um rapaz que embarcou na estação de Cachoeira do Sul, Otávio Germano, e vieram a se tornar grandes amigos para o resto da vida. Ambos foram morar na Associação Cristã de Moços (ACM) e cursaram o colegial na escola marista Rosário. A vida não era fácil, com dinheiro escasso, em um quarto sem conforto, longe dos familiares. Ele contava que tomava banho frio antes de sair pela manhã e que isto o fortalecia e dava mais energia. Nas horas vagas gostava de jogar futebol e da camaradagem entre amigos.


Seguiu os estudos com afinco até chegar ao tão esperado e concorrido vestibular para a medicina. Neste se superou, tornando-se acadêmico de medicina da Universidade Federal do Rio Grande do Sul no ano de 1945. Devido ao seu esforço como aluno, logo conseguiu uma monitoria na disciplina de Anatomia e foi trabalhar no Biotério da UFRGS, onde deu seus primeiros passos no conhecimento minucioso do corpo humano e foi quando surgiu seu amor pelo ensino e a pesquisa, aos quais veio a se dedicar já durante o curso com vários trabalhos científicos.


Passou um período tendo que servir ao exército, foi para o CPOR na cidade de Bagé, onde serviu como tenente da cavalaria. Lá conheceu sua futura esposa, minha mãe, Cely Maria Guterres Mazzini. Quando passava a cavalo pela casa dela, viu aquela linda moça na sacada e se encantou. Passaram a flertar e se enamoraram. Quando ele voltou para Porto Alegre para retomar os estudos, continuaram o relacionamento por correspondência. Quis o destino que ela se mudasse para a capital para um tratamento de saúde e, mais tarde se reencontrassem. Firmaram o namoro, conciliando os estudos na faculdade de medicina com os passeios no parque da Redenção e os bailes da Reitoria nos seus áureos tempos.



O mês de dezembro de 1950 foi marcante, pois ele se formou em medicina e logo em

seguida, casou-se com Cely. Pensou em exercer a medicina no interior, como o aconselhou um cunhado, mas foi convidado por professores para ser colaborador na Cátedra de Clínica Médica e escolheu ficar na capital. Em 1951 foi nomeado Médico Clínico do Departamento Estadual de Saúde. Logo a seguir fez o concurso público para se efetivar no cargo e ficar mais perto da vida acadêmica que ele tanto gostava.


No ano de 1955, candidatou-se a uma bolsa de estudos pela Fundação Rockfeller para o Instituto de Cardiologia do México, na época o mais renomado centro na área da cardiologia. Foi contemplado para iniciar sua especialização no ano seguinte. E poderia levar a família, pois era um princípio daquela Fundação, o de não separar as famílias para um melhor rendimento do estudante.


Começa então sua nova jornada para mais estudos, somando a Clínica Médica com a especialização em Cardiologia. Parte para o México no ano de 1956 com minha mãe, Cely, e meus dois irmãos, na época com três e dois anos, Paulo Roberto e Rubens Mário. Eu só viria a nascer um ano após o seu retorno ao Brasil. Minha família viveu dois anos na cidade do México e, segundo minha mãe, foram anos muito felizes, mesmo tendo passado pelo maior terremoto na cidade, o “El Angel” que devastou a cidade em 1957. Graças a Deus, sobreviveram sãos e salvos. Fizeram grandes amizades, além do enorme aprendizado científico que foi um marco na vida de meu pai.


No seu retorno ao Brasil em 1958, foi convidado a fazer parte do corpo clínico na Enfermaria 29, sede do Serviço Central de Cardiologia da Santa Casa de Misericórdia, sob a direção do Prof. Rubens Maciel. No ano de meu nascimento, 1959, ele foi nomeado Chefe da Seção de Eletrocardiografia do Serviço Central de Cardiologia da Santa Casa. Lá, segundo ele, foi um dos períodos mais gratificantes de sua vida acadêmica pelo privilégio de conviver com um grupo de alto nível de competência médica e docente. Daí para frente ele segue na sua missão de ensino, pesquisa e atendimento aos pacientes, salvando vidas e compartilhando seu vasto conhecimento científico na formação de novos cardiologistas. Seu sonho de se formar médico quando saiu de sua pequena Santana do Livramento, foi mais do que alcançado, pois adquiriu toda esta experiência, tornando-se um renomado cardiologista, doutor e professor universitário, bem antes de completar seus quarenta anos de existência.


Minha infância foi marcada por acompanha-lo nos estudos até tarde da noite após o

jantar, quando ele ia para seu gabinete em casa escrever seus artigos científicos e fazer suas leituras. Eu ainda não sabia escrever, mas desenhava muito e pensava que estudava igual a ele. Era um momento de sintonia entre nós. Nos finais de semana me levava para passear na pracinha do bairro, sempre que tinha um intervalo nas suas atividades. Foi ele quem me ensinou a andar de bicicleta sem as rodinhas, um acontecimento na vida de uma criança pequena e importante pelo significado de superação para levar para a vida. Guardo boas lembranças dessa época. Ele adorava jogar xadrez e nos ensinou desde pequenos a técnica e fazíamos campeonatos em família. Apesar da intensidade de sua entrega à profissão, nunca deixou de ser um pai amoroso e atencioso. E também bastante exigente com a nossa educação, junto a parceria de nossa mãe, que desde cedo nos passou a paixão pela leitura e a escrita.


Ao voltar do México ele trouxe consigo um outro sonho: desenvolver uma instituição ao nível do Instituto de Cardiologia daquela cidade, que era uma referência mundial na área. E não poupou esforços para iniciar esta saga, unindo outros idealistas que abraçaram a ideia. Juntos eles foram galgando os passos, conseguindo patrocínios e apoios necessários. No capítulo 13 do seu livro “Do outro lado do Riacho”, ele relata com detalhes como foi a empreitada da construção do Instituto de Cardiologia. Deixo aqui o convite para a leitura de seu livro que conta a primeira parte da história da cardiologia no Rio Grande do Sul (link no final). Infelizmente ele não teve tempo de escrever o volume dois, pois a doença que o acometeu, por ironia do destino, levou-o no auge dos seus 78 anos em pleno vigor intelectual e científico, deixando uma lacuna na história a ser contada. Espero que algum de seus discípulos dê continuidade à escrita.


Finalizo esta homenagem com um pequeno trecho de seu livro, ao contar seus planos da construção do Instituto de Cardiologia ao seu Professor Adjunto e Chefe de Clínica, Dr. Carlos Napoleão Salles de Barros, que o desafiou:

“Rubem, tu estás estratosférico. Eu aposto que é mais fácil o homem pousar na lua do que tu conseguires construir um Instituto de Cardiologia em Porto Alegre”; ao que ele respondeu: “Pois aceito a aposta e garanto que vamos inaugurá-lo no dia 25 de Abril de 1969, dia do meu aniversário, porque o pouso na lua está programado para julho daquele ano”.

E assim, como um visionário, ele concluiu mais este sonho, deixando um legado para sua cidade com a conclusão da obra que foi inaugurada no dia de seu aniversário: 25 de Abril de 1969.


Obrigada meu pai, por tudo que fizeste por nós, tua família, e pela comunidade rio-grandense. Hoje consigo compreender e valorizar cada ato de tua vida que tinha um propósito e nunca foi em vão.

Estarias hoje completando os teus 100 anos e com certeza terias feito muitas outras coisas surpreendentes se estivesses por mais tempo entre nós.

 

  • O livro pode ser encontrado na Amazon: “Do outro lado do Riacho” –A história da Cardiologia no RGS – Volume I (Rubem Rodrigues)

 

 

 Da esquerda para a direita: meu irmão Rubens Mário, meu pai Rubem, eu e minha mãe,no dia da inauguração do Instituto de Cardiologia.

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