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Casa de vó

  • relyjae
  • 19 de out. de 2020
  • 3 min de leitura

Atualizado: 24 de jul. de 2024

Os avós criam memórias que o coração guarda para sempre.

Autor desconhecido

 

Quando nos tornamos mais velhos, a nostalgia chega fazendo emergir as lembranças mais caras. Às vezes chegam incompletas, ou em forma de flashes que nos levam a conversar com alguém da família para que o quebra-cabeça se complete. As imagens, os cheiros e os sabores têm este poder evocativo que nos remete a algum lugar do passado.

Tenho muitas lembranças de infância, algumas mais constantes e vivazes, com detalhes sensoriais preservados. Dentre elas, a casa da minha vó Doca. Seu nome era Lydia, mas a chamavam Lydioca até se tornar Doca. Por isso me chamo Regina Lydia, em sua homenagem.


Sua casa tinha um cheiro especial de cravo, canela e calda de doce. Seus tachos de cobre, sempre fumegantes com doces de abóbora, cidra ou figo. Ah, e a marmelada e a figada, nunca mais comi igual! A sopa de trigo, a canjica com leite e goiabada...

Junto a ela, na cozinha, ficava a sua cocota, e as duas conversavam alegremente. Sim, a cocota falava, dava risada, assoviava, cantava e dançava. A vó pedia: – Dá cá o pé cocota! – e a bichinha se empoleirava no dedo indicador dela. Encantava-me aquela cena.


Vó Doca nasceu em Lavras do Sul, onde se criou com os pais e um casal de irmãos. Família pequena para a época. Descendentes de açorianos, viviam em uma fazenda de criação de gado bovino e ovino. Casou-se bem nova com um descendente de italiano da região, também criador, e com ele morou pra fora ainda por bons anos. Tiveram quatorze filhos. Com eles crescidos, precisou ir para a cidade e foi morar em Bagé, onde educou seus doze filhos — dois faleceram ainda bebês de "mal do sétimo dia" . Infelizmente anos depois, vieram a perder mais uma filha, aos 22 anos. Todos os filhos se casaram e foram fazer suas vidas pelo Rio Grande afora.


Quando mais velha e viúva, resolveu se mudar para a cidade grande, Porto Alegre, onde já viviam a maior parte das suas filhas. Lá, mesmo morando em edifício, preservou seus hábitos interioranos. Precisava de espaço para receber a família, pois era uma pessoa muito agregadora. E claro, de uma boa cozinha para poder continuar preparando seus quitutes. Encontrou um que lhe serviu no bolso e no tamanho. Detalhe importante: no mesmo prédio moravam quatro de suas filhas, cada uma no seu apartamento. Era um vai e vem pelos andares e corredores.


Nessa época eu a visitava todos os dias junto com minha mãe e, chegando lá, sempre tinha mais gente, naquele ambiente aconchegante. Ela sempre demonstrava paciência e carinho com a criançada. Não lembro de ter visto ela braba ou brigando com alguém, sabia reprender a gurizada com jeitinho e todos a respeitavam. E éramos uma turma grande! Vinte e oito netos e mais de 30 bisnetos ainda em vida. Depois vieram muitos mais. O primeiro banho era ela quem queria dar. Gostava tanto de nenês, que bem velhinha, ainda mantinha sobre a sua cama uma boneca bebê, daquelas moles, corpo de tecido e cabeça, braços e pernas de borracha. Com cabelo e tudo, parecia de verdade. Tinha uma chupeta, que quando a gente tirava da boca, chorava.


O chá da tarde era um ritual sagrado. À espera das filhas e netos, a mesa sempre bem posta com a toalha de broderie bordada e engomada, a louça Limoges com estampa floral em tons de rosa e azul. Tudo emoldurado pelos móveis de época. E para completar, sobre a mesa nos aguardavam as delícias caseiras: pães, bolo de fubá, biscoitos, manteiga e geleias. Uma cena gastronômica de dar água na boca. Quando o Cuco do relógio de parede abria a portinha de madeira e anunciava as cinco horas, estava aberta a comilança.

Bom proveito!





4 Komentar


marilena de Carvalho Garcia
marilena de Carvalho Garcia
25 Okt 2020

Foi muito bom mesmo, Gininha, experiência inesquecível, conviver com os primos mais velhos: josé Antònio e Marisa, que faziam grandes espetáculos de danças no porão da casa da vovó. Partipantes éramos nós os mais moços. E tinha Platéia: nossas mães, é claro! Muito lindo....❤️

Suka

relyjae
19 Okt 2020

Querida prima Marilena, só imagino como deve ter sido maravilhosa tua experiência nesta época...

Suka

marilena de Carvalho Garcia
marilena de Carvalho Garcia
19 Okt 2020

Mais uma de tuas maravilhosas crônicas! Relembrar é muito bom, e tenho saudades deste tempo, mas isto me fez lembrar um outro tempo, que este certamente não viveste, pois não tinhas nascido. Foram os tempos que vivi em Bagé, no casarão da Mal. Floriano.... lindos tempos...um dia te conto para que escrevas mais uma crônica! Quem sabe?

Suka

zenidanelon
19 Okt 2020

Que coisa linda essas memórias! Casa de vó deve ser mesmo um templo. Eu não tive essa experiência porque, como sou a filha mais nova de uma família numerosa, só conheci a minha avó materna, que já estava muito debilitada, então tenho pouquíssima lembrança dela. Tu me emprestas a Vó Doca? O sorriso e o olhar dela me cativaram.

Suka

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