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Bola de neve*

  • relyjae
  • 30 de abr. de 2022
  • 3 min de leitura

Atualizado: 30 de mai. de 2024


 


Como gostaria que hoje ele estivesse aqui para eu sentir tudo de novo. O calor da sua mão nos afagos diários, quando eu, aninhado junto ao seu corpo, ressonava, embalado pelo som do tec-tac da sua velha máquina de escrever. Onde será que ele foi desta vez? Está demorando demais.


A casa está diferente, tem vindo gente estranha visitar. Não gosto disso. Vou continuar esperando, ele sempre volta. Enquanto ele não chega, vou tomando conta de seus rabiscos e canetas sobre a sua mesa. Ali posso sentir sua presença.


Os outros não parecem sentir a sua falta. Distraem-se andando pelo jardim, dormindo ao calor do sol. Agora que chegou o verão, eles passeiam pela vizinhança voltando só ao anoitecer quando a fome aperta. Eu estou velho e pesado, não gosto mais de ir longe, a casa me basta e me deixa seguro. Às vezes também vou ao jardim tomar sol, e quando escuto um ronco de motor entrando pelo portão, arrumo forças e volto a correr, indo até lá pra ver se é ele chegando. Não foi desta vez, retorno cansado e deito sobre a sua cama. Ali durmo por horas e consigo sonhar com os nossos dias. Belos dias.


Esses tempos acordei ouvindo o som do tec-tac. Seria ele? Pulei da cama e corri até o estúdio. Não, quando cheguei lá vi que era a sua mulher batendo nas teclas. Parecia triste como eu, só que ela derramava lágrimas, coisa que não consigo fazer. Fui ao seu encontro e ficamos os dois em silêncio até sermos interrompidos pela voz da funcionária chamando-a para o almoço.


Chegou o outono. O jardim ficou dourado e cheio de folhas secas pelo chão. Da mesa dele gosto de ficar olhando através da janela. Vejo os outros correndo, brincando e as folhas que esvoaçam por todos os lados. Ouço o burburinho dos pássaros que antes me excitavam. Agora só os observo e sigo levando a minha vidinha, comendo, dormindo, esperando. Sinto que já não sou mais o mesmo.


O tempo começou a mudar novamente, agora trazendo as primeiras brisas geladas do mar. Os dias estão mais cinzentos. A casa está sendo enfeitada e aquela árvore cheia de bolas e brilhos que eu tanto gostava de subir e derrubar, foi montada no lugar de sempre. Está lá firme, esperando por aquele garoto brincalhão de outrora. Só consigo contemplar aquele cenário colorido.


As noites tornam-se cada vez mais frias, por isso ganhei uma manta de lã e a colocaram sobre a cama dele onde eu sempre durmo. Subi com dificuldade e me aninhei sobre ela. Enroscado naquele aconchego e calor, peguei no sono.


Lá pelas tantas senti uns arrepios, e despertei. Mais uma vez escutei o som do tec-tac da velha Royal, desta vez mais forte e pulsante, como a me chamar. Pulei da cama rapidamente como há muito não o fazia, me sentindo leve e ágil. A saudade me movia e cheguei até o estúdio, miando alto. Adentrei:


— Snowball, eu estava te esperando. Venha cá rapaz! — Meus olhos brilharam, ficando mais verdes e pulei no seu colo ronronando como ele tanto gosta. Senti o calor de sua mão a me afagar como nos velhos tempos. Então ele me enlaçou em seus braços. Juntos, parecíamos flutuar. Eu sempre tive a certeza de que ele voltaria.

Tec, tac, tec, tac, tec, tac…


“Um gato tem honestidade emocional absoluta: os seres humanos, por uma razão ou outra, podem esconder os seus sentimentos, mas um gato não o faz.”

Ernest Hemingway


* Conto de ficção inspirado no gato Snowball, de Ernest Hemingway



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